O artista mantém o mistério de sua identidade nesse projeto de apresentação.
Em sua essência, a música pop tem como função primordial fazer dançar e atiçar a libido da juventude – tem sido assim desde Elvis Presley e Beatles a Michael Jackson e Beyoncé. Que ela também tenha conseguido falar de amor, é um interessante plus. E que, eventualmente, ainda tenha sido suficiente sagaz e poética para condensar as complexidades vida em pílulas de filosofia e emoção também conhecidas como canções… aí é glória! Desses pequenos milagres que só o pop é capaz de realizar, vive Deadcat, projeto do cantor, músico, compositor e produtor que esconde sua real identidade por trás de um personagem.
Fazer dançar é um compromisso do artista nas sete faixas que compõem o seu primeiro álbum. Elas têm todas as batidas, as linhas de baixo, todas as guitarras e vocais impregnados de sensualidade e ainda os sintetizadores de timbres cintilantes que fizeram o pop atravessar décadas sem perder apelo. Mas há ainda o tal do algo mais, a magia na combinação dos elementos que faz uma música se destacar na multidão de músicas que toda semana desembarcam no streaming em 2022. Profissional com experiência nos palcos, estúdios e gravadoras (e que produz suas músicas praticamente sozinho), Deadcat traz consigo uma biblioteca, a compreensão histórica da dance music desde o momento nos anos 1970 em que as batidas sintéticas e alienígenas de Giorgio Moroder chegaram para mudar o jogo do pop (e gerar de New Order a LCD Soundsystem). E também do rock, de quando David Bowie se armou de guitarras para contar suas histórias de astronautas e seres excêntricos que tanto aguçaram a imaginação dos seus contemporâneos.Deadcat bebe nessa vontade de que a música transcenda o imediato e crie trilhas de imaginação que serão percorridas pela força da curiosidade e da sedução sonora.
Com um impensável sample do tema do filme “E o vento levou”, e uma certa dose de perigo contida na alta pressão do baixo sintetizado, “Scarlett” navega pelos mares do house-funk, como uma dessas faixas atemporais — seria dos anos 90? Dos 2000? — que arrastam o ouvinte para a pista logo nos primeiros segundos. Na mesma pulsação, “Radio” faz uma ode ao aparelhinho que animava as festinhas do mundo inteiro, mas com um sabor de verão, especialmente no refrão. É uma pedida certa para aquele fim de tarde, com cabelos salgados de mar, abrindo a primeira cerveja. Sombras se espalham pelo vigoroso dance-rock “Avant Garde”, uma sarcástica refrexão sobre fama, feita em cima da família mais famosa da internet — “and I don’t know who I am / but I dont care / I can name all the / Kardashians” (“e eu não sei quem sou / mas não me importo / sei o nome de todas / as Kardashian”). Ela abre o caminho para o electro “2 halfs”, faixa na qual a dureza das batidas bate de frente com o chiclete do refrão, com resultados irresistíveis.
Bem mais do que uma coleção de faixas para a pista de dança, o álbum de Deadcat tem coisas como “Nameless”, um rock dançante na aparência, com um coro feminino bem sexy, mas que mostra suas garras na voz grave e esfumaçada que dispara verdades como “you’re nameless, just like everyone” (“você não tem nome, assim como todo mundo”). A mesma voz devastada, acompanhada de piano, embarca na viagem soul/gospel, com órgão e sax de “Tomorrow”, a música mais emocionante do disco, junto com “Midnight boogie”, que é pura glam/disco, com sopros, em homenagem direta a David Bowie (“oh, Ziggy, você pode me ouvir?”, canta Deadcat em inglês, em referência a um dos personagens mais famosos da mitolodia bowieana). Divertido e assustador, comovente e gélido, solar e sombrio, dançante e reflexivo… muitos são os contrastes que fazem do álbum do Deadcat uma aventura boa de se enfrentar — porque nem sempre o pop vive só de satisfazer aos desejos dos ouvintes. Ele deve saciar o ouvinte, sim, mas o importante é que traga outros desejos… os inconfessáveis, que o cara nem sabia que tinha.
Por Sabrina Vasconcelos Access Midia